Por Carlos Neto
Nota: Tendo ouvido minha avó recitar essa poesia quando esteve em minha casa, dia desses, não pude deixar de aqui compartilha-la. Disse ela que sabia todos destes versos, e os cantava de cor em coro com as suas colegas do colégio de freiras, no interior paulistano, aos nove anos. Isso deve ter acontecido em algum lugar de mil novecentos e quarenta e poucos. A poesia é linda, digna de grega como bem verão, deixo-os agora aos braços dos versos de Carlos Neto.

Chamaram-no Gelert, soberbo cão de raça
Que um caçador famoso, um doudo pela caça,
Mandara vir de fora a peso de dinheiro;
Era um ídolo o cão, e ao carinho doce
Dos agrados gentis, o cão acostumou-se
A consagrar também a vida ao companheiro.

Na época melhor das ótimas caçadas,
Os dois partiam sós, à luz das alvoradas,
Buscando o coração estúpido das matas,
E voltavam depois, alegres e contentes,
Despertando em redor as íncolas dormentes,
Ao compassado som de estranhas serenatas.

Quantas vezes na caça o dente das panteras
O bramido soturno e tétrico das feras,
Ameaçaram do cão o derradeiro instante! …
Que perigos passou, quanta arriscada empresa
Não sofrera fiel, para apanhar a presa
Que ao dono provocasse um bravo delirante! …

Mas depois de algum tempo o cão envelhecido,
Desdentado, sem força, exausto, entorpecido,
Já bem dificilmente acompanhava o dono.
Era um cão sem valor, inútil companhia
Que preciso se fez, de dia para dia,
Ir deixando ficar em mísero abandono.

A fortuna também girou rapidamente;
E o velho caçador tão rico, de repente,
Sentiu minguar-lhe o pão, sentiu faltar-lhe o ouro
A morte lhe roubara a esposa muito amada,
E ele viu sua casa erma e abandonada,
Tendo um filhinho só por único tesouro.

Um dia, disfarçando o peso da desgraça
Que aos poucos lhe esmagava o triste coração,
Ele partiu, cantando as emoções da caça,
Mas quis partir sozinho, e acorrentara o cão.

O pobre companheiro, a pérola do pranto,
Descera, mas ao ver o caçador contente,
O pobre cão lá fora resignado a um canto
Deitar-se carregando o peso da corrente.

A noite que descia,
Em silêncio profundo, e em trevas envolvia
A casa, de repente
Ouve-se estranho passo. E logo, frente a frente,
Negro, ameaçador, sinistro, fero, enorme,
Farejando a amplidão, faminto, um lobo avança.
E lá no berço a criancinha dorme,
Como dorme no berço uma criança …

Nesse momento,
No turvo olhar do cão, lucila um pensamento.
O lobo se aproxima… escancarada a porta
Encontrava-se então… eis repentinamente,
A ganir, a uivar, o cão forceja e corta,
Num ímpeto de amor, os elos da corrente.
Travou-se então uma horrorosa luta
No silêncio da noite, indiferente e bruta …

Surdo ranger de dentes,
Ossos que estalam, ímpetos frementes
E contrações de dor, e urros, e gemidos,
Mil instintos da raiva em gritos comprimidos,
Na sede da vingança, e baques pelo chão,
Tudo acordava em torno da quieta solidão …
E o sangue a borbulhar, e o fogo do cansaço,
E a relva machucada, estendem pelo espaço
Um acre odor de guerra …

Depois … o baquear d’um corpo, em cheio, em terra,
Depois … um abafado e último gemido …
– um preito ao vencedor por parte do vencido –
Depois, diminuindo gradativamente,
Vagaroso arrastar de um corpo indiferente.
Depois … depois mais nada !
Era a tragédia finda e a noite sossegada …

Mais tarde, ao despertar da fresca madrugada,
O caçador voltara.
E vendo a porta aberta e a casa palmilhada,
Com o sangue do cão,
Corre para o filhinho… anseia… estua, para,
E ao ver ensanguentado o berço da criança
E vazio … estremesse, aperta o coração
E louco de amor paterno e louco de vingança
Apanha junto ao peito o cabo do punhal,
E vendo aos pés, a festejar-lhe, o cão,
Atira um golpe rijo ao peito do animal,
que exânime resvala um último estertor.
Mas nisto, ouve uma voz que chama o caçador:
“Papá … papá!” Alucinado, incerto,
(Era a voz do filhinho … o filho estava perto)
Correu – e espavorido … atônito, absorto,
E foi achar contente, rindo, sossegado,
Junto a casa do cão; e ali, bem perto, ao lado,
O lobo enorme ensanguentado e morto.

 

 

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1 comentário em “A Morte do Cão”

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